Qual é a origem dos nossos peludinhos ronronantes?
A história do gato doméstico tem despoletado, em particular nos últimos
anos, estudos que se debruçaram sobre o tema e nos permitiram conhecer
melhor a origem destes pequenos felinos, bem como a sua história desde
os primeiros passos junto aos seres humanos até ao domínio
(propositadamente sem aspas) das nossas casas.
Uma das primeiras questões que nos surgem quando pensamos na domesticação do gato é: porque motivo os domesticamos? Aparentemente, os gatos são os únicos animais que domesticamos sem termos uma razão explicita para o fazermos.
Se
verificarmos a história da nossa civilização, vemos que o ser humano
domesticou vários animais para deles retirar benefícios essenciais à sua
sobrevivência, fosse através do trabalho, da carne, do leite ou da lã.
E
fê-lo com animais que, em modo selvagem, já viviam em grupos com
hierarquias bem definidas, uma estrutura que o ser humano aproveitou
para chamar a si o estatuto de indivíduo alfa e controlar esses grupos.
Ora, os gatos não contribuem para a sobrevivência do ser humano de nenhuma dessas formas e, exceptuando os leões, os felinos selvagens
também não vivem em grupos hierárquicos nem respondem perante qualquer
alfa – na verdade, os gatos não são propensos a obedecer ou a seguir
ordens.
"Como todo o dono de gato sabe, ninguém é dono de um gato."Ellen Perry Berkeley
Então,
qual foi o nosso interesse inicial em domesticar os gatos? E será que
nós realmente os domesticamos? Vamos explorar como tudo começou e
perceber porque motivo se formou esta longa, bonita mas também
atribulada, história entre seres humanos e gatos.
A origem dos gatos domésticos
Gato selvagem (Felis silvestris lybica) | Fotografia: antony_j_jones |
Anteriormente acreditava-se que a origem dos nossos gatos seria africana, como uma adaptação evolutiva do gato selvagem africano (Felis silvestris cafra)
e que o povo egípcio teria sido o primeiro a domesticá-lo. Porém e como
vamos ver de seguida, vestígios da presença de gatos noutras partes do
globo e em datas anteriores aos achados egípcios (cerca de 4 mil anos
atrás) vieram “reescrever a história”.
Em 1983, no Chipre,
arqueólogos descobriram uma mandíbula de gato datada de há 8 mil anos
atrás. Dadas as incríveis semelhanças entre os esqueletos dos gatos
domesticados e dos gatos selvagens, era difícil afirmar se os achados
arqueológicos diziam respeito a um ou a outro.
No entanto, também é
pouco provável que alguém tivesse decidido levar gatos selvagens para a
ilha, como referiu Desmond Morris no seu livro Catwatching:
“um felino selvagem em pânico, a bufar e a arranhar seria o último
companheiro de viagem que a tripulação quereria ter a bordo”. Então, é
plausível que esses gatos já estivessem de alguma forma domesticados e
habituados à presença humana.
Humano
e gato sepultados há 9.500 anos | Imagem: “EARLY TAMING OF THE CAT IN
CYPRUS”, J.D.VIGNE, J.GUILAINE, K.DEBUE, K.HAYE E P.GÉRARD, EM SCIENCE,
VOL.304; ABRIL, 2004
A prova de domesticação mais convincente seria descoberta em 2004,
também no Chipre. Jean-Denis Vigne, do Museu Nacional de História
Natural de Paris, e a sua equipa, desenterraram um túmulo onde estavam
sepultados, lado a lado, um ser humano de sexo desconhecido e um gato de
cerca de 8 meses. Ambos os corpos se encontravam sepultados na mesma
direção (oeste). Mais surpreendente foi a datação desses restos mortais:
9.500 anos, ainda mais antigo do que a descoberta de 1983.
Uma
vez que os gatos não são nativos das ilhas Mediterrâneas e portanto
tiveram mesmo de ser transportados de barco, bem como o enterro de um
ser humano e um gato lado a lado no mesmo túmulo, forneceram fortes
evidências em como nessa altura as pessoas já tinham alguma relação
especial e/ou intencional com os gatos.
Em Junho de 2007, num estudo baseado em análises genéticas e publicado na revista Science, os autores do mesmo afirmaram que os gatos domésticos tiveram todos origem nos gatos selvagens do Médio Oriente (Felis silvestris lybica), num processo que especulam ter começado há 12 mil anos atrás – quase 3 mil anos antes da datação do gato encontrado sepultado com o “dono” no Chipre.
A data coincide com o a expansão das primeiras sociedades agrícolas no Crescente Fértil do Médio Oriente, o que nos leva ao (provável) motivo pelo qual seres humanos e gatos deram início a esta jornada juntos.
Os gatos fizeram-se convidados, e nós aceitamos
“O
que nós achamos que aconteceu foi que os gatos se domesticaram a si
próprios” afirmou Carlos Driscoll, um dos autores deste estudo, ao Washington Post.
Quanto
os seres humanos eram predominantemente caçadores, os cães eram os
melhores companheiros possíveis e assim se deu origem à domesticação do cão,
muito antes da domesticação do gato. Quando nos começamos a fixar e a
cultivar as terras, abriu-se uma janela de oportunidade para os gatos.
Com
a produção agrícola começaram a surgir ratos – que ameaçavam essa mesma
produção – e os gatos terão basicamente ficado fascinados com a
quantidade de presas (ratos) que haviam junto daquelas criaturas
gigantes de aspecto estanho (humanos). Por consequência, os seres humanos
da altura também terão ficado encantados com a capacidade de eliminação
dos ratos por parte daqueles felinos em miniatura.
Uma
relação simbiótica com tudo para dar certo. Os gatos fizeram-se
convidados (já viu algum gato pedir permissão?) e nós aceitamos de bom
grado.
Naturalmente, é de supor que as pessoas terão dado preferência aos gatos mais mansos e sociáveis,
procurando afastar das suas casas e propriedades aqueles que se
revelassem mais agressivos, dando assim origem a criações selectivas de
gatos cada vez mais afectuosos.
Contudo, enquanto os restantes
animais domésticos eram sustentados inteiramente pelo ser humano, os
gatos continuaram a ter de se desenrascar sozinhos para sobreviver – na
caça aos ratos e na procura de restos de comida - motivo pelo qual a sua
independência e apurado instinto de caça permanece praticamente
inalterado até aos dias de hoje.
Não é por acaso que, regra geral,
um gato na rua se parece conseguir desenrascar melhor do que um cão na
mesma situação (sendo evidentemente uma situação indesejável para
qualquer animal doméstico e que deve ser evitada a todo o custo). Os
cães foram sujeitos a uma criação seletiva muito ativa e são
hoje bastante diferentes dos seus ancestrais selvagens, enquanto que o
gato mantém intactas praticamente todas as características dos gatos selvagens, incluindo uma morfologia praticamente indistinguível.
Uma relação ambivalente
A
convivência entre seres humanos e gatos nem sempre foi pacífica. A
personalidade independente, a elegância os hábitos mais nocturnos e
solitários dos gatos despoletaram sentimentos mistos nas diversas
culturas e épocas pelas quais passaram.
À conquista das nações
É
bem conhecida a reverência e fascínio do povo do antigo Egipto pelos
gatos. Apesar de não terem sido os primeiros a “domesticar” os gatos
como anteriormente se pensava, certamente tiveram um papel histórico
fundamental na forma como os apreciamos e nos relacionamos com eles,
tendo chegado a considerá-lo um animal divino.
A deusa egípcia Bastet
era representada com a forma de um gato, à qual era atribuída uma
personalidade afável e forte. Diversos templos foram construídos em sua
honra e milhares de gatos foram mumificados, uma prática reservada às
pessoas mais importantes, como por exemplo o próprio Faraó. Os
arqueólogos descobriram um cemitério em Beni-Hassan que continha nada
menos do que 300 mil gatos mumificados, o que significa que o povo
egípcio fazia criação ativa de gatos domésticos.
Os egípcios puniam com a pena de morte qualquer pessoa que ousasse matar um gato.
Para
protegerem os seus preciosos felinos, impuseram também leis que
proibiam a exportação dos gatos para outros países. No entanto, esta
proibição só tornou os gatos ainda mais valiosos, o que deu origem ao
transporte clandestino das “raridades” para outros países, onde eram
vendidos por um preço elevado. O assunto era tido como tão sério que
foram criadas “delegações governamentais” cujo único propósito era
encontrar os locais para onde os gatos tinham sido clandestinamente
enviados e trazê-los de volta para o interior do Egipto.
Os
destinatários eram os países banhados pelo Mar Mediterrâneo, que
receberam os gatos provavelmente transportados em barcos fenícios.
Na
Pérsia, também começaram a ser venerados. Havia a crença de que quem
matasse um gato preto, estaria a matar um espírito amigo, criado
especificamente para fazer companhia ao Homem na sua passagem pela
Terra.
Na Grécia, os gatos não tiveram a mesma facilidade em
ganhar o seu espaço junto das pessoas, pois os gregos já tinham o seu
próprio controlador de roedores: as doninhas.
Na
Roma antiga, os gatos tiveram um papel importante como animais
caçadores e animais de companhia, embora fossem considerados mais um
símbolo de independência do que um animal de utilidade – uma situação
que se agravou depois de o Imperador Teodósio banir os cultos pagãos: a
deusa Diana tinha a imagem de um gato e rituais ligados à lua, algo que
começou a não ser bem visto.
Ainda assim o Império Romano
contribuiu para que os gatos formassem colónias em várias partes da
Europa, pois viajavam com eles nos barcos enquanto os romanos expandiam o
seu império.
Na China, o gato era visto essencialmente como um animal de companhia para as mulheres. O brilho dos olhos dos gatos durante a noite passou a ser interpretado como um poder especial para afastar demónios.
No Japão, o gato foi oficialmente introduzido no ano 999 d.C,
oferecido ao imperador Ichijo como presente de aniversário. O gato foi
muito bem aceite na sociedade japonesa e os gatos tricolores passaram a
ser os favoritos, símbolos de sorte e prosperidade. Era proibido por lei
meter um gato dentro de uma jaula ou vendê-lo.
O gato doméstico terá chegado à América
a bordo dos navios de Cristóvão Colombo e outros navegadores, chegando
mais tarde (por volta do séc. XVII) à Austrália ao viajarem junto dos
colonizadores europeus.
A perseguição religiosa
O estatuto que os gatos tinham conquistado junto das pessoas, mudou drasticamente na Europa Medieval.
Os
seus hábitos nocturnos, personalidade enigmática, olhos brilhantes e
caminhar silencioso diferenciavam o gato de qualquer outro animal e,
numa Europa dominada pela Igreja Católica e assustada pelo aparecimento
da peste negra (que se acreditava ter sido um castigo enviado por Deus)
fizeram com que as pessoas começassem a associar os gatos a espíritos
malignos, bruxaria e cultos satânicos.
O Papa Inocêncio VII, no séc. XV, incluiu os gatos na lista dos seres hereges e muitos gatos, em particular gatos pretos, foram queimados vivos junto com os seus donos, nas fogueiras do Santo Ofício.
Sobre esta época tormentosa, Desmond Morris escreveu:
"Como os gatos eram vistos como maléficos, todos os tipos de poderes assustadores lhes foram atribuídos pelos escritores da época. Diziam que os seus dentes eram venenosos, a sua carne tóxica, o seu pêlo letal (causaria asfixia se acidentalmente engolido) e o seu hálito infecioso, destruindo os pulmões e provocando consumo (NR: um dos nomes dados naquele tempo à tuberculose, devido à abrupta perda de peso dos infectados)."
Esta
“paranóia” com os gatos foi tão longe que nem as publicações
supostamente credíveis melhoravam a situação, bem pelo contrário, como
continua a descrever Desmond Morris:
"Até mesmo em 1658, Edward Topsel, num trabalho sério de história natural [escreveu]: os familiares das bruxas aparecem geralmente na forma de gatos, o que atesta em como esta besta é perigosa para o corpo e a alma."
Ironicamente, o massacre dos gatos nos rituais cristãos parece
ter contribuído largamente para a disseminação da peste negra,
transportada pelos ratos que ficaram praticamente sem inimigos naturais.
A peste negra acabou por matar cerca de 75 milhões de pessoas, um terço de toda a população da época.
A perseguição aos gatos só teve fim durante o reinado de Luís XIV, Rei de França.
Um regresso triunfal
Os
gatos vieram a recuperar a sua reputação quando começaram a acompanhar
as tripulações nos navios, ajudando a manter os alimentos dos
marinheiros a salvo dos roedores.
Mais tarde, devido ao seu
tamanho pequeno, hábitos de higiene, beleza, agilidade e afetuosidade,
começaram a ser vistos como animais finos e a oferecerem uma boa
reputação social aos seus donos.
Gato persa azul apresentado à Rainha Vitória de Inglaterra. |
A
Rainha Vitória de Inglaterra (1819-1901) começou a interessar-se por
gatos à medida que iam sendo divulgadas as descobertas arqueológicas no
Egito sobre a adoração que aquele povo tinha pelos pequenos felinos. Por
esta altura estavam a ser publicadas e catalogadas todas as gravuras e
estátuas da deusa Bastet recuperadas pelos arqueólogos e a consequente
associação do gato a reinados e divindades.
A Rainha decidiu então
adotar dois persas azuis, que tratou como elementos da sua corte. Sendo
uma Rainha popular, a adoção dos gatos rapidamente virou moda e chegou
ao Estados Unidos através da revista mais popular da época, Godey’s Lady’s Book
(1830-1878). Num artigo da revista publicado em 1860, era afirmado que
os gatos não se destinavam apenas ás pessoas mais idosas ou a monarcas,
mas que toda a gente se deveria sentir confortável em abraçar o “amor e a
virtude” do gato.
Pouco depois, em 1871 realizou-se a primeira
exposição de gatos, no Crystal Palace em Londres. Em 1895, toda a
avenida de Madison Square Garden, em Manhattan, recebia com grande
entusiasmo e popularidade a primeira exposição de gatos nos EUA.
Hoje em dia, os gatos são presença assídua nas nossas casas e companheiros inseparáveis das nossas vidas.
Existem mais de 600 milhões de gatos a viver entre nós, o que já fazem deste o animal de estimação mais popular em todo o mundo.
História completa!!!E imagens belíssimas, como sempre!
ResponderEliminarBeijinhos e ronrons.
Um abraço bem forte, bem verdadeiro,
ResponderEliminarabraço longo, cheio de sentimento.
Venho deixar meu abraço pelo dia do abraço
com muito carinho.
Evanir.
Amiga a história do gato está ligada à história do homem, excelente trabalho. Acho que os gatos nunca deixaram de ser independentes, livres. Fazem o que lhes apetece e o homem nunca consegue vence-los. São animais misteriosos e lindíssimos. Beijinhos
ResponderEliminar" DEus criou o gato para que possamos acariciar o tigre"
ResponderEliminarAdoro felinos , todos!
Excelente trabalho, amiga.
Abraço e bons sonhos :)
Muito bem, que história mais completa! e assim fiquei a saber mais sobre os amigos peludos, a ver pelo meu nunca se deixará domesticar completamente, aliás costumo chamar-lhe de "rebelde".
ResponderEliminarBjs
Uma beleza seu post!a história completa dos nossos amados bichinhos peludos!Também estou falando sobre gatos no meu post de hoje,participando da semana colorida da Anne Lieri.Um beijo!
ResponderEliminarmuito completa e que gostei de ler.
ResponderEliminar:)
Fê
ResponderEliminarObrigada por mostrar a história dos gatos. Sempre os comparo com a postura dos deuses. Seus modos elegantes de sentar e andar.
Sempre digo que Deus-adulto criou a onça e Deus-criança o gato.
Amei . bjs.